Alunos que fazem anúncios falsos se am por médicos e zombam de clientes
"Somos mentirosos do bem", "todo mundo sabe que não funciona", "mentir é o que 90% faz [sic]". Esses são alguns comentários feitos por alunos de um curso que ensina a criar anúncios fraudulentos com o uso de imagens geradas por inteligência artificial para vender produtos irregulares pela internet.
Ontem, o UOL Confere mostrou que pessoas pagam R$ 1.097 para assistir a essas aulas na plataforma BitesFlix, cujo responsável é Daniel de Brites. Os alunos também aprendem a criar perfis falsos em redes sociais e a forjar engajamento para ar credibilidade às publicidades enganosas.
As vendas costumam ser encaminhadas em conversas com os clientes no WhatsApp. Alguns vendedores chegam a se ar por médicos na tentativa de enganar possíveis compradores.
Os alunos também interagem entre eles em um grupo do WhatsApp, que serve para tirar dúvidas e divulgar os links para engajamento dos posts fraudulentos. O grupo da turma de que a reportagem participou contava com cerca de 600 inscritos. As aulas ocorreram entre fevereiro e abril.
Eles são orientados a adotar uma abordagem agressiva nos anúncios e compartilham experiências sobre o retorno financeiro das publicidades falsas. Além disso, também debocham dos clientes que acreditam nelas.
Procurado, Brites negou que haja manipulação de imagens de pessoas famosas em suas aulas, apesar de a reportagem ter presenciado a fraude. Em nota, a defesa declarou que não ensina qualquer prática ilegal (leia mais abaixo).
Produto só foi revelado após curso começar
Ninguém sabe o que é o produto que Brites vende até entrar no curso. Nas redes sociais, ele diz apenas que vende "encapsulado" e que faz dinheiro com a internet com marketing de afiliados.
Leva algumas aulas até ele apresentar o que realmente vende. O principal produto é um suplemento alimentar chamando Detox Oriental, que promete emagrecimento de forma mágica e é irregular, de acordo com as regras da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Depois das primeiras aulas em que são ensinadas as técnicas para a manipular imagem com inteligência artificial, alguns alunos demonstraram preocupação no grupo do WhatsApp. Já outros mostram desprendimento sobre usar anúncios falsos para ganhar dinheiro e até fazem piadas sobre isso.
Um aluno chegou a registrar uma queixa no site Reclame Aqui em que diz que se sentiu enganado após a contratação do curso.
Reportagem do UOL gera questionamentos
A imagem de Drauzio Varella é constantemente utilizada nesses anúncios ilegais. Uma checagem do UOL Confere que desmentiu anúncios falsos do Detox Oriental com a imagem do médico foi compartilhada por um aluno no grupo com os colegas e levou a um debate interno.
A checagem verificou que o produto não possui registro da Anvisa, ao contrário do que é dito aos alunos, e informa que Drauzio está processando a Meta, dona de Instagram, Facebook e WhatsApp, por causa de posts como os que eles aprendem nas aulas.
Alguns alunos demonstraram preocupação em acabar vendendo um produto falso ou ilegal, ou por estarem aplicando golpes e cobraram explicações de Brites. Outros simplesmente atacaram o UOL Confere e tentaram descredibilizar a apuração.
Ao ser confrontado, Brites se limitou a ar o contato do produtor do suplemento, que é seu primo e sócio, para que as pessoas tirassem dúvidas sobre a suposta aprovação da Anvisa.
Não foi apresentado documento para que os alunos pudessem verificar a autenticidade do produto. "Você acha que vou te ensinar algo que vai te prender, cara?", escreveu Brites no grupo.
Abordagem agressiva e chantagem emocional
O público-alvo dos fraudadores são mulheres com sobrepeso e mais de 40 anos. As pessoas que acabam sendo fisgadas pelos anúncios são na maioria mulheres em situação de vulnerabilidade.
Uma cliente chegou a relatar que gostaria de emagrecer porque era chamada de "gorda" pelo marido. A conversa foi compartilhada no grupo da turma.
Mas a orientação geral é de que a abordagem deve ser agressiva e "tocar na ferida" dessas mulheres. Em uma das aulas, a leitura feita sobre o público-alvo foi a de que são mulheres que os maridos "começam a tratar mal" e ficam vulneráveis. "É pra ela que a gente vende", disse Brites.
A última etapa dessa tática de persuasão é tentar concluir a venda por ligação telefônica. Como roteiro, vale tudo: apelo emotivo sobre os possíveis riscos da obesidade e sobre doenças crônicas com informações e promessas falsas sobre os efeitos do suplemento; chantagem emocional sobre autoestima; e promessas de que haverá acompanhamento de "especialista" durante o tratamento com o produto.
No entanto, no grupo de WhatsApp, os alunos debocham das clientes que entram em contato acreditando que estão falando com um médico e fornecem informações pessoais sobre peso, histórico de saúde e hábitos.
"Quem tá fazendo químio pode tomar?"
Questões de saúde foram levadas ao grupo. Uma pessoa entrou em contato com intenção de adquirir o produto e disse que tinha hipertensão e apenas um rim. Ela se dizia preocupada em sobrecarregar o órgão.
Outra perguntou se uma criança podia tomar, porque queria comprar para a filha. Um aluno questionou se alguém que está fazendo quimioterapia pode tomar a cápsula, mas não obteve resposta.
Outras dúvidas sobre alergias a componentes da fórmula do suplemento também surgiram, assim como sobre se pessoas com problemas cardíacos podem consumir.
Em nenhum dos casos foi apresentada uma orientação objetiva. No geral, argumentam entre si no grupo que não há contraindicação e que há mensagens prontas no "script" da venda por WhatsApp para objeções por questões de saúde.
A única unanimidade no grupo é de que o produto seria contraindicado para lactantes. Porém, tudo é discutido sem a presença de um médico de verdade.
"Todo mundo sabe que não funciona"
Os comentários negativos de pessoas que entravam em contato a partir dos anúncios também geraram discussões entre os alunos. Alguns clientes dizem se tratar de um golpe, alegando que pagaram pelo produto, mas não o receberam.
Segundo Brites, os produtos com a marca Detox Oriental que são vendidos em plataformas como Shopee e Mercado Livre são "falsos". Os originais seriam apenas os ofertados por ele e seu primo.
Mas houve também consumidores que reclamaram de terem feito pagamentos pela venda no WhatsApp e não terem recebido o produto.
Quando clientes entram em contato para reclamar que o produto não funcionou, os alunos riem e dizem que as pessoas querem continuar comendo de tudo e que "todo mundo sabe que [o produto] não funciona", já que o anúncio é baseado em "emagrecer sem dieta e sem academia".
Rodízio de produtos e concorrentes
É possível notar que há uma rotatividade dos produtos vendidos. Em uma das aulas foi citado um produto anteriormente comercializado chamado Detox Gold.
Em outra, um aluno faz referência a um Detox Paris em interação com Brites. Para uma turma nova que começaria em maio, foi apresentado um "rejuvenescedor" de nome Rosa Oriental. Mas todos seguem a mesma linha: prometem algo mágico e não têm registro na Anvisa.
No final de maio, havia cerca de 150 anúncios ativos do Rosa Oriental na biblioteca de anúncios da Meta.
Brites nega manipulação de vídeo de famosos
Ao UOL Confere, o advogado Arthur Marinho, que representa Daniel de Brites, negou que haja manipulação de imagens de famosos para promover produtos e disse que o uso de inteligência artificial nas aulas tem como objetivo o desenvolvimento de técnicas lícitas de marketing digital como a criação de personagens, conhecida como "seller personas".
Marinho negou que haja incentivo de prática ilegal ou que suas práticas configurem falsidade ideológica, propaganda enganosa ou comercialização irregular de produtos.
Sobre o Detox Oriental, ele afirmou que se trata de um suplemento alimentar em conformidade com a legislação brasileira e com a documentação exigida para oferta no mercado, mas não apresentou essas informações ou a documentação.
"Lamentamos a veiculação de informações inverídicas e sensacionalistas, e permanecemos à disposição para eventuais esclarecimentos adicionais", concluiu a nota enviada.
A Meta afirmou que atividades que tenham como objetivo "enganar, fraudar ou explorar terceiros" não são permitidas nas plataformas. A empresa recomenda que usuários denunciem os conteúdos.