'Vi cães famintos, fui seguido por drones': veterinário atuou na Ucrânia

Scott Miller é um veterinário conhecido por suas aparições na televisão britânica e pelo programa "Bondi Vet", onde compartilhava um pouco da rotina em sua clínica veterinária em Richmond, na Inglaterra. Hoje, ele apresenta programas em prol dos bichos em um canal no YouTube chamado "Rescue Vet" ("Veterinário de Resgate", em tradução livre). Determinado a ajudar os animais, um dia teve um estalo: precisava ir para a Ucrânia.
Sem a companhia dos amigos —ninguém teve coragem— ele se uniu a uma ONG e, com uma câmera na mão, registrou os momentos vividos na linha de frente da guerra. Com direito a bombas, drones que poderiam atacar, cirurgias feitas dentro de uma van e um cenário de muita destruição.
"Há uma sensação de culpa ao voltar para casa e ver que estou bem, minha família e meus bichos também, enquanto há tantos necessitados. Quando você vai para a guerra, a experiência te muda", conta com exclusividade ao UOL.
Com agem comprada para retornar ao país, Miller contou à reportagem um pouco da experiência vivida tentando salvar os pets deixados para trás por famílias que fugiram desesperadas das áreas de conflito.
UOL: Por que você decidiu ir para a linha de frente da guerra para ajudar os animais?
Scott Miller: Fui convidado para um evento no Memorial dos Animais em Guerra, em Londres, que acontece todos os anos para lembrar dos bichos que serviram com o exército britânico. Havia várias ONGs presentes, com atuação no Reino Unido e também internacionalmente. Enquanto ocorriam as homenagens, pensei: por que não estamos ajudando os animais que estão atualmente presos em uma guerra? Tive um estalo e, em seis semanas, já estava indo para a Ucrânia.
Você foi sozinho?
Conheci a ONG "Breaking the Chains" (em tradução livre, "Quebrando as Correntes") nesse evento. Fiquei impressionado com o trabalho que realizam na linha de frente, entregando comida e oferecendo ajuda. Achei que poderia ser útil nessa missão. Quando você é veterinário, sempre pode contribuir onde há animais feridos. Mas percebi que a situação era ainda mais desafiadora. Convidei alguns colegas, inclusive da imprensa, que inicialmente aceitaram, mas desistiram perto da data. A guerra não era para eles. Então fui sozinho, com uma câmera, registrar o que vi.
Em qual momento você ficou mais assustado? Assisti a alguns vídeos da sua ação no país e havia bombas caindo perto da sua localização.
Certo dia, estávamos perto do rio Dniepre, ajudando uma mulher que cuidava de 200 cachorros sozinha --seus funcionários haviam fugido com medo da guerra. Era uma mulher forte, dedicada a cuidar dos animais abandonados por famílias que não conseguiram levá-los. Com tantos bichos juntos, começaram a se reproduzir e a transmitir doenças, já que não há vacinação em tempos de guerra. Castramos alguns animais e aplicamos vacinas.
Enquanto trabalhávamos, ouvimos explosões se aproximando. Estava realizando cirurgias em uma van, que começou a tremer. Fiquei muito nervoso, mas estava com pessoas acostumadas àquele cenário, que permaneceram calmas. Apoiei-me nelas e continuei. Estava no meio de uma cirurgia.
Quais os problemas mais comuns enfrentados por esses animais? A desnutrição? Doenças?
Com certeza, a má nutrição. Como consequência, surgem doenças infecciosas, principalmente gastrointestinais. Lembro de outro momento tenso: fomos perseguidos por um drone enquanto deixávamos comida para os animais na linha de frente, em Bakhmut. É possível parar por, no máximo, 90 segundos --mais do que isso, corremos risco de sermos bombardeados. Quando a comida é deixada, muitos animais se aglomeram no local. Muitos deles --e também pessoas-- estão morrendo de fome ou sendo mortos por armas de fogo.
Como você aguenta ver essas cenas, sabendo que há tão pouco a se fazer?
Como veterinário, aprendi que não é sobre mim: é sobre o paciente e seus tutores. Emoções não podem interferir nas decisões médicas. Isso é difícil até mesmo quando trato meus próprios animais, que amo profundamente.
Na Ucrânia, precisava focar nos que estavam sofrendo. Não importava como me sentia. Quem ama animais conhece o amor incondicional que eles oferecem. Estava chocado, assustado, foi horrível, mas os ucranianos am por isso todos os dias.
Manter-me firme era uma forma de demonstrar respeito. Mas é inevitável sentir culpa ao voltar para casa e perceber que minha família e meus bichos estão seguros, enquanto tantos outros estão em risco. A experiência da guerra fica com você.
Há mais animais, além de cães e gatos, sofrendo na linha de frente?
Sim. Há uma ONG que está resgatando peixes, afinal, não há como levá-los em malas. É brilhante. Eles ficam em tanques de um centro de resgate e servem até como distração para os cães.
Um dos meus animais preferidos são os golfinhos, e eles também estão sendo impactados. Estima-se que pelo menos 50 mil tenham morrido no mar do Norte devido aos sonares e bombas. Pássaros também sofrem. Há um zoológico que pretendo visitar em breve, onde muitos animais morreram por falta de energia elétrica durante o inverno. Eles não foram feitos para ar o clima ucraniano.
Você disse que pretende voltar em breve. Está mais confiante agora que sabe o que vai enfrentar?
De certa forma, sim. Desta vez vou com um produtor que está nervoso, mas não iremos para a linha de frente, e sim para Kiev. Fui convidado a palestrar sobre o trabalho que realizei. Para mim, os verdadeiros heróis são os que se arriscam diariamente pelos animais. Mas você tem razão: já ouvi drones russos, bombas e isso acaba criando uma certa resistência.
Os soldados e civis da fronteira convivem com isso todos os dias. Sinto que alguém precisa dar voz aos que não têm. Suponho que, por enquanto, esse papel seja meu.
O que pessoas que adotam animais traumatizados, como muitos da Ucrânia, precisam saber?
Alguns são jovens o suficiente para não ficarem marcados para sempre. Mas o maior desafio, além de encontrar uma nova família, é tirá-los da guerra. A burocracia é enorme e mantém os animais presos por horas nas fronteiras.
Conheço o caso de um gato que ficou detido por 20 horas, o que só aumentou seu trauma. Mas considerando tudo o que enfrentaram, esses animais só precisam de amor e paciência.