O que acontece se acordo de delação premiada de Mauro Cid for anulado

Juristas ouvidos pelo UOL dizem que o acordo de delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid pode ser invalidado se for comprovado que ele mentiu, mas isso não necessariamente significa que será encerrado o processo criminal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e demais réus no STF.
O que aconteceu
Acordo foi questionado nos últimos dias. Reportagem da revista Veja publicada na quinta-feira mostrou mensagens entre o perfil do Instagram @gabrielar702 (atribuído a Cid) e alguém próximo ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) - o que seria uma violação de condições do acordo. Na sexta, o ex-ministro Gilson Machado foi preso pela PF sob suspeita de tentar emitir um aporte português para Cid, que seria usado em uma suposta fuga do Brasil. Ele nega as acusações.
Advogados pediram para STF investigar perfil. A defesa de Cid diz que a conta no Instagram não é dele, e pediu investigações sobre a titularidade. A defesa de Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais de Bolsonaro, também pediu dados. Os advogados do general Walter Braga Netto pediu para o STF determinar a entrega de informações como histórico de o, transações e vínculos do perfil com outras contas (no WhatsApp, por exemplo).
Estratégia das defesas é deslegitimar delator. Bolsonaro, Braga Netto e demais réus questionam a credibilidade da delação de Cid. "O acordo firmado por Mauro Cid possui grave vício de voluntariedade e, entre mentiras e coações, sua delação é absolutamente desprovida de credibilidade", diz uma petição da defesa do general.
Juristas dizem que é preciso investigar se acordo de fato foi violado. Firmado no fim de 2023, o acordo tem condições como sigilo sobre as informações prestadas. O advogado Daniel Bialski diz que mentiras e omissões podem provocar a anulação de delações. Já o criminalista Alexandre Pacheco Martins pondera que é preciso aprofundar as apurações e que uma eventual anulação beneficiaria apenas a retórica dos outros acusados.
O princípio básico da delação é confidencialidade e confiabilidade. Se o delator vazou informações ou faltou com a verdade, desvirtuou, escondeu, ele pode ter a delação dele anulada. O principal motivo que se usa e que se deve usar para anular uma delação é justamente quando está constatado que a pessoa mentiu ou omitiu. Se ela não está sendo sincera e está ou protegendo alguém ou querendo prejudicar alguém, isso fica demonstrado. Aí a delação tem que ser de fato cancelada porque ela não tem a mínima idoneidade
Daniel Bialski, advogado, mestre em direito processual penal
Não seria correto invalidar desde logo a delação com base em algo que por enquanto é uma mera suspeita, ainda que grave. É necessário um aprofundamento das apurações e garantir ao delator a possibilidade de se defender. Eventual anulação nesse momento somente beneficiaria a retórica dos demais acusados e colocaria em segundo plano a presunção de inocência que deve valer para todos
Alexandre Pacheco Martins, advogado criminalista
Anular acordo não encerraria processo no STF. Isso porque o caso não está ancorado exclusivamente no relato de Cid. Na delação, o ex-ajudante de ordens contou que Bolsonaro discutiu a possibilidade de dar um golpe para continuar no poder no fim de 2022 — o que foi confirmado por outras testemunhas, como o general Freire Gomes e o almirante Carlos de Almeida Baptista Júnior.
Se acordo for anulado, Cid seria principal prejudicado. O principal impacto de uma eventual anulação seria do próprio delator, que pode perder os benefícios da delação (penas mais brandas em caso de condenação no caso, por exemplo). O jurista José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça entre 2011 e 2016, considera que a anulação não comprometeria as provas e o processo.
Se ele mentiu e ficar comprovado que ele mentiu, o acordo pode ser invalidado. Isso não afeta, porém, nada da apuração criminal em relação aos réus. Mentir é um problema para o delator, que pode perder a vantagem da delação, mas o processo não perde porque há provas. A maior parte das informações do delator tem provas. Desqualificar o discurso não vai fazer desaparecer as provas
José Eduardo Cardozo, advogado e ex-ministro da Justiça
Acordo quase caiu no ano ado. Em março, vazaram áudios em que Cid dizia estar sendo pressionado pela PF — ele foi preso por descumprimento de cautelares e obstrução de Justiça. Em novembro, foi convocado a depor novamente, pois a PF revelou detalhes relevantes num relatório que ficaram de fora do relato original dele. Na época, o STF disse que era a "última chance" para o delator dizer a verdade.