Para fugir da cadeia, Bolsonaro assume fama de covarde e desequilibrado

Jair Bolsonaro estava visivelmente desconfortável, sentado no banco dos réus, diante de um Alexandre de Moraes de poucas palavras no segundo dia de interrogatório dos acusados da trama golpista na Primeira Turma do STF.
Parecia desconcertado por não poder exibir, por ordem de Moraes, uma série de vídeos que preparou na ocasião. Foi como ensaiar os os de uma dança sem música. Distante da versão bravateira, que berra e xinga, o ex-presidente tentou manter a calma enquanto ostentava na lapela do blazer, por ironia, a medalha do Pacificador, entregue a ele em 2018 pelo Exército.
Quem esperava um confronto de capa e espada ficou decepcionado. Moraes fez as perguntas que precisava e deu campo para Bolsonaro jogar. Quando percebeu, o ex-presidente relaxou e já falava como se estivesse na Vivendas da Barra. Muitas vezes, como tantas vezes, falou nada com nada.
Posou de vítima, como sempre, e disse ser perseguido pelas supostas virtudes, que irritou poderosos e até parte da imprensa, que o retaliou pelo corte nos rees de verbas oficiais. Não foi por maldade, jurou Bolsonaro. Foi o teto de gastos.
O ex-presidente negou (quase) todas as acusações apontadas na denúncia da PGR. Não, ele não tramou contra as eleições, não discutiu golpe de Estado, não editou minuta golpista, não defendeu prisão de ministros do Supremo, não ouviu ninguém colocar as tropas à disposição, nem ouviu ameaça de voz de prisão de qualquer general - já que nenhum absurdo foi colocado à mesa.
No máximo ele criticou as urnas eletrônicas. Até aí, até o Brizola, lembrou. Então o que explica tantos encontros com os chefes das Forças Armadas desde a derrota nas urnas? "Um vazio que o senhor nem imagina", explicou Bolsonaro.
O vácuo existencial, após a derrota nas urnas, era tamanho que ele perdeu até a disposição de cumprir o aviso prévio como presidente. Havia ainda dois meses no cargo, e ele gastou os dias preenchendo o vazio em rodas de conversa (informais, frisou) com os poucos amigos que não se afastaram dele - por coincidência, todos fardados.
Foi a eles que Bolsonaro exibiu alguns "considerandos" ao fim da disputa eleitoral, conforme itiu ao Supremo. Era tudo o que a PGR queria. Ao longo do dia, cada réu se desvencilhou das acusações como pôde.
Almir Garnier disse que não cabia a ele, ex-chefe da Marinha, discutir rumos políticos com o presidente. Anderson Torres, ex-ministro da Justiça, alegou que sabia escrever e a minuta golpista atribuída a ele era cheia de erros de português. Seu interesse, jurou o ex-chefe da polícia do Distrito Federal , era ear na Disney no fim do ano, e os atos golpistas de 8 de janeiro não só ferraram com ele, que foi preso, como também os filhos, que queriam ver o Mickey.
E o general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, disse que não havia condições para um golpe.
Bolsonaro foi na mesma linha. Não disse que não desejava um golpe. Mas que "não tinha clima" nem uma "base minimamente sólida" para isso.
"É meu temperamento"
No tempo restante, Bolsonaro usou o banco dos réus para desabafar. Disse que andava triste demais com o Tribunal Superior Eleitoral por não poder fazer o que queria nas eleições. Não podia usar espaço público para finalidades privadas. Não podia exibir foto com a rainha (oi?). Não podia distorcer imagens do candidato rival na propaganda eleitoral?
Restava o quê?
Xingar o xerife das eleições - no caso Moraes, a quem pediu desculpas por acusar, sem provas, de levar dinheiro para favorecer os rivais. "É meu temperamento", afirmou ele, diversas vezes, ao longo do interrogatório. Bolsonaro também se queixou da rotina como presidente."É um inferno aquela vida", disse.
Ele contou que chegou a se questionar o que fez de tão grave para merecer tal castigo. Que a família sofreu muito e que o relator não sabia o que era trabalhar de domingo a domingo, com uma folga aqui e ali para andar de jet ski na praia.
Não fosse o pix dos seguidores, afirmou, teria dificuldade hoje para bancar o filho nos Estados Unidos ou o advogado dos processos. "Arrecadei mais do que o Criança Esperança", brincou. Moraes tem razão para desconfiar do relato do réu. Uma das contradições foi dizer que gostaria de disputar as eleições de 2026 - e voltar para o inferno que acabara de descrever.
Queria, inclusive, que Moraes fosse o vice na sua chapa. "Declino", respondeu o ministro.
Dali em diante Bolsonaro tentou mostrar que estava do lado bom da força e lançou vários "E o Lula?" (sem citar o atual presidente) para dizer que ele, os ministros e os apoiadores eram diferentes, puros e não jogavam baixo. Os apoiadores são acusados de quebrar as sedes dos Três Poderes após serem inflamados pelo líder.
Bolsonaro sequer estava no Brasil em 8 de janeiro de 2023, como fez questão de frisar. Para não ser preso? Não, com medo de tomar "a maior vaia da História" ao ar a faixa para o adversário. Para fugir da cadeia, assumiu a fama ora de covarde, que foge, ora de desequilibrado, que xinga, ameaça e depois recua. Ali já não parecia falar com a Justiça, mas com o público que o assistia.
* *Matheus Pichonelli é jornalista e cientista social, com agens por Folha de S.Paulo, iG, Carta Capital, Yahoo!, Intercept Brasil e UOL, além de colaborações para a revista Piauí e o jornal O Globo. Atualmente é roteirista do ICL Notícias.